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Days of Heaven

Álvaro Domingues
18 de Julho de 2025

No início do guião de Days of Heaven, Terrence Malick transcreve dois excertos do romance Boy Life on the Prairie (1899), de Hamlin Garland: “Hordas de nómadas varreram a região na época das colheitas como uma praga de gafanhotos, jovens imprudentes, bonitos, profanos, licenciosos, dados à bebida, poderosos, mas trabalhadores inconstantes, briguentos e difíceis de gerir em todos os momentos (…) e que faziam questão da sua liberdade de ir e vir. (…) Falavam da cidade, e de selvas sinistras e venenosas com que se pareciam todas as cidades das suas histórias. Tinham cicatrizes de batalhas. Vieram do longínquo e desconhecido e passaram para o norte, misteriosos como os gafanhotos em fuga, deixando o povo de Sun Prairie tão ignorante de seus nomes e personagens reais quanto no primeiro dia de sua chegada.”

 

Estava lançado o mote: revisitando factos e mitologias da América do início do séc. XX, o filme é sobre a errância dos humanos pelo mundo, nunca sobre coisas com princípio, meio e fim. É essa condição humana que, menos pelos diálogos entre personagens, e mais pela exuberância ou delicadeza das imagens, se vai desenrolando sem nunca se revelar completamente — um comboio atravessando o céu, o olhar terrífico dos animais fugindo da maquinaria da ceifa, a semente de trigo que germina, o estremecer da superfície do lago varrida pelo vento, a luz irreal do crepúsculo, o aparato poderoso das máquinas a vapor, o fogo, tudo isso fala da tragédia humana que se vai desenrolando. As personagens dissolvem-se na poética da paisagem; pontualmente, uma voz de criança, Linda, verbaliza o que ninguém ainda nos disse: “Vagueávamos pelas ruas. Havia pessoas a sofrer, com dores e com fome. Algumas pessoas tinham a língua de fora… Andávamos de um lado para o outro, a ver e a procurar coisas, a viver aventuras.” Era Chicago, a América, o trabalho duro nas fornalhas das siderurgias, a prepotência dos capatazes, a miséria dos operários. Depois seria o grande êxodo para a planície.

 

As Grandes Planícies fazem parte da geografia mítica da corrida para o Oeste, para a liberdade, para a fronteira, em busca de mundos novos e riquezas escondidas nas vastidões das pradarias, territórios há muito ocupadas por tribos nativas que defendiam ciosamente os seus domínios. Foram tempos de violência e de extermínio, de lutas constantes pela terra, pelas incertezas de um clima volátil e árido, pela dureza do trabalho, pelas disputas entre pioneiros, colonos e índios, onde dominava a lei do mais forte numa algazarra de culturas, tantas quantas as origens de gente vinda de toda a Europa, com as suas crenças e visões do mundo. Nessa grande agitação onde só poucos conseguiam singrar, a planície impunha-se como o chão comum que todos, de alguma forma, tinham de enfrentar. Não era já a wilderness entendida como natureza virgem, como terra prometida, intocada pelos humanos e pelos seus actos e ideias. Em Days of Heaven, a natureza existe como algo transcendental, ao mesmo tempo físico e sobrenatural, aquilo que nos situa no mundo e onde se inscreve uma ordem moral, a possibilidade de renascer e restabelecer a harmonia do cosmos, ou o caos, mas também o embate contraditório com o poder das máquinas e a cobiça dos humanos.

 

De um tão poderoso confronto brota uma geopoética intensa, muito para lá da contemplação dos grandes espaços. Ao contrário: os elementos desta alquimia física e metafísica — a terra, o ar, a água, o fogo, os bisontes, os cavalos, o vento, as aves e os insectos e toda a infinidade dos animais da pradaria — assumem o papel principal de uma poética poderosa e trágica. Os humanos não podiam sequer existir fora daquilo que, ao mesmo tempo, organiza a materialidade da vida, mas também, e sobretudo, as emoções, o espanto, o desconhecido, a sorte. Não admira por isso que a estética dominante nos confronte com paisagens sublimes e ameaçadoras, lugares de cataclismos bíblicos, beleza e violência. O clima extremo da Planície, o frio intenso do Inverno e a canícula do Verão, as tempestades súbitas e violentas, o vento continental seco, raramente se amaciavam para alguma brisa ocasional que trouxesse amenidade e frescura às copas das árvores.

 

Extrema é também a paisagem social injustamente dividida entre os grandes terratenentes e os que nada tinham a não ser braços para os trabalhos sazonais nas searas do trigo.

 

Os textos bíblicos — referidos no título do filme, desde logo — sublinham a amplitude daquilo que o cinema pretende transmitir. Pela fala de Moisés, os Dias dos Céus são a vida boa que o Senhor-Deus promete aos homens que lhe obedecem e seguem os seus mandamentos: “Colocai, portanto, estas minhas palavras no vosso coração e nas vossas almas; / (…) Escrevei-as nas ombreiras das vossas casas e portas, / para que multipliqueis os vossos dias e os dias dos vossos filhos como os dias dos céus sobre a terra, na terra que o Senhor jurou aos vossos pais que vos daria.” (Deuteronómio 11, 18-24) Serão dias de inferno, também.

 

Mais do que uma história confinada a episódios da vida de umas poucas personagens — os seus amores, o ciúme, o ódio, o calculismo, o sonho —, Terrence Malick quer falar de algo que começa, não se sabe como, e que finaliza como se fosse recomeçar: vagabundos. O paraíso seria noutro lugar, numa terra prometida. A viagem no comboio que atravessa os céus é a imagem desse êxodo permanente. Contudo, a felicidade que reina é quebrada pela voz de Linda anunciando o apocalipse: “Conheci um tipo chamado Ding Dong. Ele disse-me que toda a Terra irá arder em chamas. As chamas vão aparecer aqui e ali, e vão-se erguer. As montanhas vão ser engolidas pelas chamas e a água vai subir em labaredas. Haverá criaturas a correr por todo o lado, algumas delas queimadas, com metade das asas a arder, e as pessoas gritarão sem parar por socorro.”

 

Assim será. Depois de passar o grande portal da propriedade, da aparição irreal do casarão que domina a vastidão das searas do grande fazendeiro e se constitui como verdadeira personagem, depois da fartura das espigas ao vento, do trabalho incessante das máquinas e dos contratados, assiste-se ao evoluir da felicidade, do trabalho e dos enganos. Passados os tempos felizes após a colheita, e durante a nova sementeira, logo que o trigo está maduro e outra colheita está prestes a começar, as tensões explodem e abrem-se as portas dos dias dos infernos, anunciando a morte violenta dos dois homens que amam a mesma mulher.

 

De tudo há testemunhos: dos animais que pressentem a desgraça, da luta inglória pelo domínio das chamas, do caos, do vento que levanta revoadas de fumo negro, da fúria devoradora de milhões de gafanhotos, da terra queimada até ao osso. “Uma terra de problemas e de suor desmedido”, disse Heidegger, questionando-se acerca daquilo em que se tornou a busca de respostas para o sentido da existência e da irracionalidade do mundo, sobretudo aquela que todos os dias acontece.

 

Depois da morte de Bill junto ao rio, há um corte brusco e aparece um grande plano de um piano mecânico. Linda, fugida de um internato onde se educavam meninas, corre com uma amiga que diz que não espera duas horas por ninguém. Conversam, passeando ao longo da linha do comboio em direcção a lugar nenhum. Noutra ocasião, Linda, a sibila que falava na sombra, dizia: “O sol parece fantasmagórico quando há nevoeiro no rio e o silêncio reina. (…) Ninguém é perfeito. Nunca houve uma pessoa perfeita. Uma pessoa é metade demónio e metade anjo.”

Álvaro Domingues  
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.

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