Curtas de Dominga Sotomayor

Cristina Fernandes
18 de Novembro de 2025

A primeira coisa que salta aos olhos neste ciclo é a enorme pulsão do cinema em Dominga Sotomayor. Para além de ter começado a filmar muito cedo — escrevendo os seus próprios guiões e intercalando curtas com longas-metragens, realizações a solo ou repartidas —, a cineasta é uma das fundadoras da produtora Cinestatión e do CCC — Centro de Cine y Creación, em Santiago do Chile. Encarar o cinema deste modo, como um ofício total, é a única forma de resistir a interesses financeiros que ora empobrecem a matéria dos filmes, ora promovem a sua invisibilidade. Nesse sentido, a carreira de Dominga Sotomayor é um admirável exercício de consciência política e também um sinal do vento juvenil que agita a América Latina.

 

Realizadas ao longo de 12 anos, as curtas-metragens desta sessão retratam cenas banais da vida familiar. Debajo, La isla e Sin título mostram como as tensões e silêncios, habituais nestes encontros com muitas crianças e adolescentes, se intensificam perante situações extraordinárias. As três obras inserem-se no que é convencional chamar ficção, mas a câmara trabalha de um modo quase documental: observa as rotinas quotidianas a uma certa distância e sem pressa. Em geral, a história já vem de trás e só começamos a perceber o enredo aos poucos, quando já estamos presos às personagens e à paisagem. Sem propriamente um começo e um fim, e livre de artifícios, estes filmes tornam-se misteriosos: cada minuto que passa encerra pequenas descobertas. Por fim, Correspondencia é uma espécie de ensaio sobre as próprias famílias das realizadoras e parece fechar um círculo perfeito.

 

Em Debajo (2008), um dos primeiros trabalhos de ficção de Sotomayor, um homem que mora numa casa sem electricidade na montanha, longe de tudo, convida alguns familiares e a filha, com quem mantém uma relação distante desde que se separou, para verem um eclipse. O filme é rodado inteiramente ao ar livre, com uma perspectiva aérea. O dispositivo técnico, assim como o cenário (por vezes, o quintal parece uma campânula de vidro) e o próprio fenómeno astronómico, criam um ambiente um pouco claustrofóbico. A determinada altura, a miúda pergunta ao pai o que aconteceria se ficasse escuro para sempre e este responde que não sabe. Quando a escuridão chega, todas as personagens se diluem: só vemos o reflexo dos óculos de protecção. Nessa obscuridade, e nesse não saber, Jaime consegue ganhar a confiança da filha.

 

La isla (2013), co-realizado com a polaca Katarzyna Klimkiewicz, adapta livremente o poema de “Acidente de viação”, de Wisława Szymborska. Logo no início, há um carro que se despista: ouvimos o som e vemos alguém a correr, mas o acidente acontece fora de campo. Aos poucos, percebemos que o filme acompanha uma reunião familiar numa casa de férias em Chiloé. Chegam mulheres, homens e crianças, preparam um churrasco, passeiam pela natureza densa e recordam o passado. Só falta Jaime. Como no poema, pressentimos que aconteceu uma desgraça enquanto escorriam o macarrão, varriam as folhas no jardim e as crianças corriam aos gritos, mas só a cinco minutos do fim é que ouvimos a notícia do acidente na rádio. A família é informada da morte de Jaime no último plano. A câmara fica do lado de fora de casa: vemos as personagens à distância, através da janela. A austeridade do enquadramento alinha-se de novo com a tristeza sussurrada do poema.

 

Alguns anos depois, Dominga Sotomayor filma o quotidiano não apenas de uma família, mas de todos nós à escala mundial. Sin título, 2020 (2021) é um registo da passagem tempestuosa da Covid-19 pelo nosso quotidiano. Uma cantora lírica está isolada numa casa de campo; quando recebe a notícia do nascimento do neto, vai com a filha mais nova à cidade levar um berço de verga. Tem permissão para andar na rua durante duas horas. As estradas estão quase vazias por causa do confinamento. O berço é puxado por uma corda, o bebé é mostrado à varanda. Depois, cada um regressa ao seu isolamento com as máscaras nos rostos. A vida e a música, porém, continuam.

 

Correspondencia (2020) é uma conversa epistolar com Carla Simón, uma cineasta espanhola que também trabalha a partir das suas vivências e memórias. As duas começam por remexer no passado, através de filmes de família ou fotografias antigas, falam do passado e do presente, das mortes das avós, das mães, e delas próprias, das dificuldades em conciliar o cinema com a maternidade. Estas cartas fílmicas traçam um amplo retrato geracional e, de certa forma, consagram uma passagem de testemunho. À margem dessa intimidade, o presente explode nos últimos planos. A câmara de Dominga Sotomayor está agora em movimento nas ruas de Santiago do Chile e grava as manifestações de 2019 pelo fim dos últimos resquícios de ditadura e por uma Constituição mais justa, que assegure a todas as pessoas uma vida digna. É uma bela linha de fuga.

Cristina Fernandes
Cristina Fernandes (Porto, 1966) é investigadora independente na área do cinema. Desde 2004, escreve sobre filmes e literatura em diversas plataformas, atualmente no blogue Bicho Ruim. Tem publicado artigos em revistas e projetos editoriais dedicados ao cinema, assim como traduções de autores como Emil Cioran, Chantal Akerman e Marguerite Duras, em editoras como Edições 70, BCF e Contracapa. O seu percurso combina crítica, tradução e investigação, refletindo um interesse pelo diálogo entre artes, pensamento e imagens em movimento.

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