Constelação #4
Lagutrop
Lagutrop nasce das entranhas do fim do mundo, de um apocalipse antevisto em todas as civilizações modernas. Lagutrop é também a evidência de um país que, ciclicamente, se olha a si mesmo como um país falhado. Uma tão grande consciência de si que produz uma depressão repetida. Lagutrop é, ainda, uma forma de olharmos a distopia no cinema português.
Nas histórias do nosso cinema, muitas vezes se observa como o cinema de género sempre foi menorizado ou ignorado. É tão assim que alguns dizem que o cinema português é um género em si mesmo. Acompanhando este discurso de excecionalidade, outros ainda viram o cinema português quase como uma ficção científica. E, no entanto, o cinema português, na sua reduzida capacidade de produção, nunca teve um cinema de ficção científica ou fantástico com visível expressão. Isso não significa que os temas distópicos não tenham habitado, de forma transversal, vários momentos da nossa filmografia. Nesta constelação, pretendemos mostrar alguns desses exemplos, obras menos conhecidas ou mesmo ignoradas, onde se cruzam ecrãs de computadores dos primórdios da computação com as ruínas selvagens de uma arquitetura vanguardista abandonada, e temas que circulam pela ameaça nuclear, a impossibilidade da maternidade, ou as escatologias do fim do mundo.
No cinema do pós-25 de Abril, há vários filmes que jogaram com as esperanças e desesperanças da revolução. São exemplos evidentes de distopias — alguns destes filmes passaram pelo Batalha no último ano, como Os Demónios de Alcácer Quibir (1976), de José Fonseca e Costa ou A Confederação (1977), de Luís Galvão Teles —, mas não são essas frustrações que queremos evidenciar. Antes queremos destacar filmes que fazem uma evidente aproximação ao género de ficção científica ou à fantasia, ou filmes que, pela sua construção narrativa, apresentam mundos outros, da loucura, do delírio ou da magia.
Há cineastas óbvios nesta viagem, e não é por demais destacar o caso de António de Macedo, quase cineasta maldito da história do cinema português. Pela sua obra — e pela sua vida, já que era um notório amante da escatologia — pululam obras de ficção científica e fantasia, glosando alguns mitos e fantasias da história de Portugal. Em Macedo apresenta-se uma mundividência muito centrada num tempo da ameaça nuclear. É, aliás, um tema partilhado por vários destes filmes: uma espécie de preparação para o fim do mundo por vir. Os filmes de Solveig Nordlund e Pedro M. Ruivo (e poderíamos aqui citar José de Sá Caetano, que não faz parte desta constelação) são exemplos maiores de distopias “clássicas” do cinema de género. A obra de Edgar Pêra, outro exemplo, é também uma obra circular neste jogo com um labirinto kafkiano e escatológico (mostraremos dele uma das suas primeiras curtas-metragens). Abrimos ainda espaço ao cinema de Margarida Gil, que aflorou o género no filme que aqui escolhemos.
Os cinemas experimental e amador são também um terreno propício para ensaiar outros mundos. Numa sessão que junta várias curtas (incluindo António Campos e Patrick Mendes que, nas suas épocas, são cineastas de uma obra consistente), mostram-se experiências num jogo entre rituais mágicos e a procura por uma fuga aos estados totalitários. Noutro campo, e noutra sessão, juntamos filmes que lidam com estados alterados de consciência, prometendo uma discussão entre a decadência e o fulgor. Alguns destes filmes foram também últimos suspiros do cinema feito em película, no dealbar do novo século.
Curiosamente, muitos destes filmes afirmam a desesperança do amor e a distopia como a última possibilidade da sua existência. Um cinema que procura, avidamente, a “invenção do amor”. Enfim, a ideia não é afirmar a existência de um cinema de ficção científica em Portugal, mas olhar para alguns exemplos de um cinema que, usando os tiques de género, olhou para o país no seu avesso. Por isso, Lagutrop é um anagrama de Portugal. É Portugal ao contrário, e nele olhamos as suas vísceras.
Daniel Ribas
Investigador, programador e crítico de cinema, é Professor Auxiliar na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena o Mestrado em Cinema. É Diretor do CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de vários programas de filmes, nomeadamente para o Porto/Post/Doc, no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde IFF. Doutorado em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho, escreve sobre cinema português, cinema contemporâneo e experimental.
Paulo Cunha
Desenvolve trabalho em investigação, programação e crítica de cinema. É Professor Auxiliar na Universidade da Beira Interior, onde é Diretor do Mestrado em Cinema e Vice-Presidente do Departamento de Artes. É membro integrado do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e do INCT Rede Proprietas. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães. Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, escreve sobre cinema português, estudos decoloniais, crítica e cultura cinematográficas.
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