Christiane F.

Fernando José Pereira
6 de Dezembro de 2025

Uma conversa recente com uma dupla de músicos italianos e uma compositora iraniana residentes em Berlim colocou um ponto final na romantização simbólica de que a cidade foi alvo ao longo de décadas. As grandes companhias tecnológicas instalaram-se lá e o pragmatismo neoliberal é, hoje, a regra na cidade. Rendas altas, vida cara, dificuldades para os artistas.

Berlim Ocidental era, nos anos 70, uma espécie de Cavalo de Tróia do chamado Ocidente: o eufemismo utilizado pelo capitalismo para se significar a si próprio. Conhecemos a lenda deste famoso dispositivo militar grego que se infiltrou sob forma enganadora no campo inimigo para depois, de surpresa, o dizimar. Berlim Ocidental era uma ilha/enclave fechada no interior do designado território do socialismo real existente na República Democrática Alemã. O dispositivo referido é, neste caso, puramente simbólico. Uma metáfora, portanto. A cidade/Cavalo exalava uma força libertária, criativa e de “progresso” que atraía muitos e muitas. Mas era, também, dada a sua peculiar situação, terreno de grandes convulsões geoestratégicas e interesses vários, muitas vezes obscuros.

A palavra “vanguarda” aparece originalmente na nomenclatura militar para significar uma parte das tropas que vai à frente e se arrisca (tal como o Cavalo) e, dessa forma, possui conhecimento e experiências que serão partilhadas, a posteriori, com os que se encontram mais atrás. Algum tempo depois, o termo foi apropriado pela arte, mantendo, contudo, o mesmo significado. Talvez por isso, a atracção que Berlim Ocidental exerceu nos artistas tenha sido enorme. E, como tal, aí se construiu uma vanguarda que nas diversas áreas criativas expandiu a sua influência a todo o mundo. Na música, desde o mais experimental e obscuro kraut rock até ao famoso techno berlinense.

A cidade apresentava-se como a possibilidade de se colocar em prática a máxima recente de “sex, drugs and rock’n’roll”, aqui transfigurada em techno (os músicos de Berlim desenvolveram uma estética muito própria deste género, vivenciada intensamente nos seus famosos clubes nocturnos) misturado com drogas e sexo. Potenciava a ansiada liberdade de se fazer o que se quiser, consciente, inconscientemente, mas, acima de tudo, do poder fazer. O fascínio e deslumbramento em níveis altíssimos. Percebe-se, assim, que do lado de fora da cidade todo o pretenso glamour que esta exalava a transformasse numa espécie de “zona”, onde, tal como em Stalker, do cineasta russo Andrei Tarkovsky, todos os desejos seriam cumpridos, e, no entanto, onde a entrada era absolutamente proibida. Rodeada, igualmente, por cercas electrificadas e guardada por homens armados.

As imagens da cidade colocam-se deliberadamente no interior do Cavalo. As imagens são maioritariamente escuras e noctívagas. Mas é na noite que o fascínio é maior. No escuro, libertamo-nos mais facilmente. E, contudo, ali, no interior obscurecido do dispositivo, o glamour desaparece e transforma-se em ansiedade e sobrevivência. Em luta individual. Neste espaço de encerramento, o Muro é inexistente (uns anos mais tarde, Wim Wenders irá filmar o exterior do “Cavalo” e toda a verdade se tornará visível nas suas imagens banhadas de luz, num preto-e-branco desolado), existe apenas a ingenuidade adolescente de querer experimentar. De querer ir mais longe. Tal como os artistas das vanguardas.

David Bowie, como tantos outros e outras, por lá passou e marcou a sua carreira com vários álbuns absolutamente indispensáveis. É, aliás, um dos pontos altos da sua carreira.

Uma das suas músicas mais famosas inicia-se com uma referência à exaltação de liberdade existente naquela cidade tão especial e à sua capacidade para libertar corpos e pensamentos. E, contudo, há uma estranha precariedade temporal: só por um dia. Refere o músico:

 

I, I will be king

And you, you will be queen

Though nothing will drive them away

We can beat them, just for one day

 

Bowie sabia, ao contrário dos adolescentes da cidade, que a libertação prometida se encontrava suspensa num tempo curto, apesar de intenso. Depois, o nada. Depois, a realidade pura, difícil e inultrapassável. Talvez a morte.

Mais à frente, ainda na mesma canção tão importante para o seu tempo, Bowie aprofunda o seu olhar sobre a cidade. Afinal, trata-se de um tema que se intitula “Heroes”. Os adolescentes da Berlim dos anos 70 querem-no muito ser. Mesmo que isso lhes custe a vida. Mas, sabemos bem, os heróis são assim. Por isso, Bowie traz-nos anti-heróis, que conseguem sair do interior do Cavalo e olhar a realidade. A sua realidade. Voltemos, então, às palavras do músico:

 

I, I can remember (I remember)

Standing by the wall (by the wall)

And the guns, shot above our heads (over our heads)

And we kissed, as though nothing could fall (nothing could fall)

And the shame, was on the other side

Oh, we can beat them, for ever and ever

Then we could be heroes, just for one day

 

Seríamos heróis, mas só por um dia. Efémeros. Como naquele dia em que o Muro caiu. E que nós, quais adolescentes berlinenses, acreditámos que todos os muros desapareceriam daí em diante.

É tão bela a ingenuidade…até desabar no nada. No vazio.

Como uma vulgar shot de heroína.

Fernando José Pereira
Fernando José Pereira (Porto, 1961) é licenciado em Pintura pela Universidade do Porto e Doutor em Belas Artes pela Universidade de Vigo. Desde os anos 90, desenvolve uma prática artística na qual se destaca a utilização do vídeo. Enquanto membro do coletivo de música eletrónica experimental Haarvöl, tem vindo, mais recentemente, a explorar a relação entre o vídeo e a música. A sua obra integra as coleções da Fundação de Serralves, do Centro Galego de Arte Contemporânea e da Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros.

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