Carne trémula parece uma súmula do cinema de Pedro Almodóvar ao evocar os temas do desejo e erotismo, da ligação entre o físico e o sentimental, sobre a efervescência do despontar de uma relação, com o prazer e a dor, a tragédia e o amor lado a lado. Porém, representa também um marco na evolução do seu cinema. É como se Almodóvar começasse, a partir daqui, a confiar mais na sua capacidade de contar uma história de forma mais visual, não só através de uma miríade de ideias, de um enredo alucinante e de uma hiperactividade criativa que dominava muitos dos filmes anteriores como Matador (1986), mas de uma forma mais meticulosa, mais metódica.
Essa ideia de deixar cada imagem contar a história a um tempo próprio (ou seja, sem a engolir pela vertigem do plano seguinte e uma ideia diferente), de prezar a coerência do argumento, está presente logo na primeira sequência, uma espécie de prólogo, que mostra o nascimento de Victor, uma das personagens principais, a bordo de um autocarro. A cena enquadra o início da história ainda durante a ditadura franquista numa Madrid de ruas vazias e sem vida, algo que este nascimento parece surgir para contrariar. Através de um plano de longa duração que mostra o autocarro visto de fora, Almodóvar chama a atenção para o nosso voyeurismo, mas também para esta mudança na sua abordagem visual, mais contida e ao serviço da narrativa. Trabalhando pela primeira vez com um argumento adaptado a partir de uma história que não é da sua autoria (um romance de Ruth Rendell), e com a colaboração do escritor Ray Loriga, esta é uma história de uma circularidade notável, que começa e acaba com um nascimento, com um tiroteio a abrir e a fechar a história, como um relógio, como diz um anúncio no autocarro da primeira sequência, com uma precisão absoluta, que o realizador vai também procurar.
Vinte anos passaram desde a cena inicial em que encontramos Victor à procura de uma rapariga que conheceu na noite anterior, enquanto um par de polícias patrulham essa zona; um deles (Sancho), mais velho, bebe para esquecer uma suposta infidelidade da sua mulher e o olho negro com que a deixou, e o mais novo (David), interpretado por Javier Bardem, tenta conter o comportamento irascível do colega. Victor encontra a rapariga, Elena, mas os dois acabam a discutir, e os polícias têm de intervir. Segue-se o primeiro “duelo”, com Victor e os polícias a apontarem armas uns aos outros. Almodóvar alterna entre os diferentes pontos de vista de cada personagem, jogando com a imprevisibilidade e tensão com uma mestria digna de Hitchcock, evocando, mais uma vez, o cinema clássico para logo o subverter.
O desenlace desta sequência será fundamental para a parte central do filme. Alguns anos depois, encontramos David numa cadeira de rodas, paraplégico devido a um disparo, e casado com Elena. Victor, por sua vez, quando sai da prisão volta a procurar Elena, por quem desenvolve uma obsessão e um plano de vingança, mas acaba por se envolver romanticamente com Clara, a mulher de Sancho. Numa teia de ligações entre personagens, revelações sobre o passado e actos impulsivos para curar males do coração, joga-se uma desconstrução da sociedade espanhola e das suas estruturas de poder, numa Espanha que aprende aos poucos a libertar-se do conservadorismo da ditadura. Esta é, assim, além da ligação a Hitchcock (reforçada pela presença de uma personagem numa cadeira de rodas a espiar outra através de uma câmara fotográfica, como acontece em Rear Window, de 1954), uma aproximação ao cinema de Buñuel: numa televisão vemos um excerto de Ensayo de un crimen (1955), e Clara é interpretada por Ángela Molina, actriz de Buñuel em Cet obscur objet du désir (1977) — obra que partilha com este filme de Almodóvar uma examinação das obsessões amorosas. Mesmo sendo um Almodóvar mais comedido, há ainda espaço para algumas sequências mais espectaculares, como o uso de uma canção popular sobre uma cena erótica, sendo também notáveis uma sequência em que Bardem tem de desmontar a sua cadeira para entrar no carro e uma recriação do primeiro tiroteio, agora com uma pistola de plástico. Apesar de tudo, Almodóvar é mais optimista (ou menos cínico) que Buñuel e, por isso, permite-se ainda terminar com algo esperançoso, no sublinhar do tal círculo da vida, através de um final duplo: primeiro, a morte trágica do casal que representa a Espanha antiga e, depois, o despontar do casal que representa a nova Espanha, e um nascimento saído do amor, símbolo da perda do medo.
João Araújo
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.
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