Brief Encounters (Korotkie Vstreci, 1967), da realizadora ucraniana Kira Muratova, constitui-se como um exemplo raro da modernidade no cinema nas mais diversas dimensões. Aliando um certo realismo com algumas nuances experimentais, Muratova faz sentir o uso da câmara e da montagem cinematográfica numa encruzilhada de flashbacks que desorienta o espaço-tempo narrativo e que motiva, provavelmente, o título desta longa-metragem—Breves Encontros. Aliás, é no próprio filme que Muratova—ao interpretar a personagem feminina principal, Valentina—vai desconstruir as convenções da narratividade ao declarar um certo estranhamento: “Quando vejo um leio um livro, [...] também em sofrimento, tudo é lógico e correcto, há causa e efeito, o princípio e o fim.” O discurso auto-referencial, que encerra também uma crítica velada às práticas cinematográficas imperialistas, encontra ainda ecos na voz do amante, Maksim, interpretado pelo cantor e compositor Vladimir Vysotsky: “Cowboys, os primeiros Homens na Terra. Geólogos, os segundos”, diz ele a dada altura.
Ao casal, junta-se ainda um terceiro elemento—para recorrer à terminologia de Goethe em As Afinidades Electivas (1809)—, Nadya (Nina Ruslanova), jovem empregada doméstica que, entretanto, se mudara do campo para a cidade. Mas tal triângulo amoroso não se encena verdadeiramente como tal, antes é construído apartadamente a partir das memórias de uma e outra mulher com um só e mesmo homem. Maksim surge, pois, como essa presença espectral, que se prolonga em alguns objectos indiciais, como é o caso da guitarra pendurada em casa, que permeia as recordações de ambas as mulheres. Fruto de um acaso, Nadya é contratada por Valya para fazer as lides (“Não quero lavar a louça! Não quero lavar a louça!”) e será em segredo—no segredo do filme, revelado ao espectador—que vão partilhar o mesmo obscuro objecto de desejo.
O puro presente dá-se, assim, nessa relação entre Valyae Nadya, cuja homofonia esconde as diferenças fundamentais que as separam. A primeira encarnando uma mulher aparentemente emancipada, urbana e bem-sucedida, com um cargo de responsabilidade na administração local (e inúmeras referências aos camaradas, às conferências, etc.); a segunda, camponesa deslocada na cidade em trabalhos de limpeza (que, de resto, a primeira recusa fazer). Mas a dialéctica entrecampo e cidade estende-se para lá das figuras femininas, com Maksim a deambular—qual nómada—entre a cidade, onde se encontra com Valya no apartamento, e o campo, onde exerce a sua actividade como geólogo e onde terá conhecido Nadya numa das expedições. Esse nomadismo geográfico traduz, sobretudo, o nomadismo existencial ou o radical liberalismo individual (a dada altura, Valya nomeia-o idealista) de Maksim:“Estás sempre a pensar em algo? [...] Tenta não pensar.
Sempre esquivo, sempre alheio, Maksim não se deixa capturar nem pelas atmosferas burocráticas—com que ironiza ao dizer “Viva o sentido de dever!”—, nem pelos compromissos amorosos—“Everything is possible.” Um homem em fuga que se entrega às paixões voláteis e aos desejos do corpo, como se vislumbra nesse plano em que Nadya se espreguiça diante da câmara e das suas formas se insinua uma guitarra.
A natureza impregna as imagens doravante impressionistas, desde o plano geral da estrada longa por entre searas à natureza morta, que surge já no final do filme, em cima de uma mesa de refeição. Também simbolicamente, Valya está associada a um dos elementos vitais—a água—que ocupa uma das suas preocupações políticas e sociais fundamentais, e Maksim à terra, como geólogo que é em busca dos metais preciosos. Mas, como em Goethe, a natureza é sobretudo a natureza do desejo—amoroso, erótico, mas não só—que se impõe, como forças de atracção que respondem às leis da física e da química e que respiram uma certa imoralidade. Talvez por isso—e pelo afastamento estético da propaganda soviética—esta longa-metragem, que é a primeira a solo de Muratova, tenha sido censurada pelas autoridades soviéticas durante 20 anos.
As pequenas personagens ocupam depois a função de um coro colectivo, ora quando se dirigem a Valya reivindicando habitações e condições dignas, ora quando a amiga de Nadya se recusa a que lhe dêem ordens, apesar de tudo, ora quando relembram as vítimas da II Grande Guerra e do hitlerismo, como esse velho homem de chapéu que, numa espécie de refrão, relembra a morte de ambos os filhos. Os instantes em que incisivamente diz “Os alemães mataram-na. [...] Os alemães mataram-no” ressoam ao longo de todo o filme como um murmúrio do passado, para que ninguém se esqueça, sobretudo o espectador. Moderno, como dissemos—todavia, é nas pequenas virtudes que o filme de Muratova se agiganta: como nessa cena em que uma jovem camponesa corre pela rua generosamente oferecendo sementes de girassol a Valya e, nesse momento, não podemos deixar de pensar nos inúmeros e vastos campos da Ucrânia, hoje provavelmente arrasados.
Alexandra João Martins
Licenciada em Ciências da Comunicação, mestre emEstudos Artísticos pela Universidade do Porto, e doutorandaem Estudos Artísticos na FCSH-Universidade Nova de Lisboa,tendo sido bolseira da FCT. Escreveu para diversas publicações.Colaborou e integrou os comités de seleção dos festivais CurtasVila do Conde e Porto/Post/Doc. Em 2017, foi selecionadapara o Talent Press Rio e, em 2018, comissariou a exposiçãoComo o Sol/Como a Noite, com o apoio da Fundação CalousteGulbenkian, no âmbito da retrospetiva dedicada a António Reise Margarida Cordeiro no Porto/Post/Doc.
©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA