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FS Beyrouth fantôme: Ana Naomi de Sousa

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Beyrouth fantôme

Ana Naomi de Sousa
1 de Fevereiro de 2024

Toda uma maldita cidade


“Às vezes, uma pessoa tem de fazer algo imperdoável só para continuar a viver.”— Carl Jung


Realizada em 1998, Beyrouth Fantôme é uma obra de Ghassan Salhab (n. 1958), um de entre os vários artistas que viveram a guerra civil do Líbano de 1975–1990 e que lidaram com as consequências catastróficas do rescaldo do conflito. Um filme que não é tanto sobre guerra, mas sobre o que esta guerra terá feito e que, pelo caminho, presta homenagem à cidade natal devastada de Salhab—aos que ficaram e aos que regressaram e tiveram de se encontrar na devastação.


O psicodrama noir de Salhab é feito de sonhos estilhaçados nas ruas da capital libanesa assoladas pela guerra no final dos anos 80 quando Khalil, um homem com cerca de 30 anos, reaparece na cidade onde foi declarado morto há dez anos. Mas Khalil não é o único espetro a assombrar a cidade. O filme enquadra um momento amargo na história da guerra civil do Líbano, em que grande parte da população de Beirute havia fugido. A cidade tinha sido dividida de Leste a Oeste e o conflito urbano intensificara-se com ataques de franco-atiradores, lutas de rua e carros armadilhados. Os sons de disparos e explosões perpassam a banda sonora do filme, sugerindo a iminência de um novo desastre. Parecia mesmo que a guerra poderia nunca acabar e os libaneses, tal como os protagonistas do filme, já tinham desistido de ter esperança.


As perguntas sem resposta em torno do desaparecimento de Khalil avolumam a desconfiança, a suspeita de traição e a raiva assola os que eram seus amigos. Khalil pode ter regressado, mas eles continuam a viver o seu próprio exílio interno, irrevogavelmente despojados das vidas e da sua cidade de antes da guerra. Enquanto Khalil busca lentamente os despojos da sua vida anterior, materializa-se uma visão de uma cidade e da sua gente assombradas pela tragédia e pelo trauma do conflito. “É possível que a nossa geração, a que viveu este período em toda a sua intensidade, se pareça com estes prédios com o interior em ruínas”, reflete o ator Ahmad Ali Zein numa das entrevistas que aparecem ao longo do filme como memórias irreprimíveis expressas pelo elenco, com uma franqueza dolorosa, alguns anos após a guerra terminar.


Ao vermos este filme em 2024 é impossível ignorarmos outra das assombrações da obra—“aquela Palestina coma qual sonhámos tanto”, como lembra Khalil. O Líbano acolheu dezenas de milhares de refugiados palestinianos depois da “catástrofe” do Nabka de 1948, quando o estado de Israel foi criado e cerca de 850.000 palestinianos ficaram sem nada; mais alguns milhares vieram em 1967, quando Israel invadiu a Cisjordânia e Gaza. O filme passa-se numa altura em que a Organização de Libertação Palestina havia sido expulsa do Líbano e milhares de palestinianos tinham sido massacrados em Sabra e Shatila, nos arredores do campo de refugiados de Beirute. A sul do Líbano, lutava-se contra as forças de ocupação israelitas, o que ainda perdura... Como tantos dos sonhos que vão aparecendo no filme, a visão de libertação palestiniana de Khalil e de Hanna fica presa num limbo entre os vivos e os mortos.


Ainda assim, a Beirute “fantasma” de Salhab perdura e atrai, apesar do desfiguramento que o conflito lhe traz. O humor negro do filme apela não só aos absurdos da guerra, mas também ao espírito irrepressível e rebelde da cidade. Quando Khalil persegue um vigarista local para recuperar uns documentos oficiais com o seu antigo nome, dizem-lhe: “Não conseguimos ressuscitar os mortos, nem em Beirute”. Mas Beirute está constantemente a ser reconvocada à vida; afinal de contas esta é a cidade que dizem ter sido reconstruída das cinzas sete vezes—muito antes da guerra civil e antes da explosão portuária de 2020 que a avassalou novamente. Nas ruínas que ainda caracterizam Beirute, permanecem as suas vidas passadas, como um membro fantasma.


Realizado menos de uma década após o final da guerra, numa época em que a elite política do Líbano escalava as ruínas—e a si mesma—para conseguir uma fatia da reconstrução, os sons do genérico de Beyrouth Fantôme reverberam a reconstrução frenética que se seguiu numa tentativa falhada de, em última análise, ocultar os crimes e cicatrizes daquele passado recente com uma fina camada de uma nova paisagem urbana. O filme inteiro ecoa as primeiras palavras da atriz Darina Al Joundi: “Talvez isto acabe com toda esta maldita cidade de uma vez por todas." O destino indestrinçável da arquitetura de Beirute e da sua gente é uma característica frequente nas obras artísticas da geração de Salhab—por exemplo, Joana Hadjithomas (n. 1969)e Khalil Joreige (n. 1969); Tony Chakar (n. 1968); Mohamed Soueid (n. 1959); Lamia Joreige (n. 1972)—e, na verdade, de quem veio antes deles, como a realizadora Jocelyn Saab(n. 1948) e a poeta e artista Etel Adnan (n. 1925). Quando a guerra rebentou, Adnan escreveu, a propósito de Beirute, que “com a queda de cada muro e a morte de cada homem, estava a ser apagado algo que pertencia à vida e memória coletivas”. É a essa “vida e memória coletivas” que o cinema de Salhab aspira, desencantando esperança no que se tornou ruína.

Ana Naomi de Sousa
Ana Naomi de Sousa é cineasta e jornalista. Realizou os documentários The Architecture of Violence, Angola—Birth of a Movement, Guerrilla Architect e Hacking Madrid—todos eles exibidos na Al Jazeera English. Colaborou com a agência Forensic Architecture, em Saydnaya, e num documentário interativo sobre uma prisão militar síria para Amnistia Internacional. Colaborou com Decolonizing Architecture em vários filmes e instalações. Escreve sobre a política pós-colonial, espacial e cultural para diversas plataformas,incluindo The Guardian, Al Jazeera e The Funambulist.

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