O filme abre com a violência de um choque. Um vídeo íntimo, banal na sua origem, exposto sem consentimento, transformado em espetáculo público, arrasta a vida privada de uma professora para o centro da praça. As imagens circulam, multiplicam-se, inflamam conversas, acumulam julgamentos. A obscenidade já não está no ecrã. Instala-se no coro que se reúne em volta dele. O olhar já não procura intimidade.
O filme organiza-se em três gestos. Há uma deriva realista, com a câmara colada ao quotidiano da cidade; segue-se uma colagem ensaística, onde definições e imagens compõem um léxico do absurdo; chega por fim a farsa do julgamento, que estilhaça a fronteira entre o riso e o desconforto. As partes mantêm autonomia, e o contraste dá-lhes peso, como se olhar o presente exigisse quebrar o próprio filme em pedaços, sem promessa de unidade. A unidade possível é a do choque.
A meio caminho entre ensaio e crónica, Bad Luck Banging or Loony Porn abre-se também à cidade. Bucareste surge como um corpo febril, atravessado por outdoors militares, buzinas incessantes, muros cobertos de anúncios e insultos. A câmara percorre estas ruas com a paciência de quem recolhe fragmentos do real, como se obedecesse a uma antiga vocação do cinema: deter-se na superfície física das coisas, insistir naquilo que se mostra sem filtro. Esse gesto lembra o flâneur que Benjamin recuperou de Baudelaire, o olhar que se perde e se encontra no meio da multidão, demorando-se nos sinais dispersos até compor uma paisagem moral. O que emerge é um caldo de signos — consumo, fé, pornografia, nacionalismo, ressentimento — onde a intimidade exposta de Emilia se dissolve. Um olhar que se perde na multidão para encontrar uma paisagem moral.
Na escola — que carrega o nome de um ideólogo antissemita —, o julgamento ergue-se como numa ágora farsesca. O portátil repete o vídeo, o coro repete o rancor. Cada intervenção acrescenta um inventário de fúrias: insultos contra estrangeiros, suspeitas contra judeus, nostalgias de autoritarismo. Não há acidente neste espetáculo. A obsessão em julgar Emi é a forma presente de um mecanismo antigo. Numa primeira leitura, a cena soa a alerta contra o regresso do fascismo. Numa leitura mais demorada, a evidência é outra: a política moderna nunca se liberta destes regressos. Sob a retórica do progresso, ironicamente espelhada no julgamento moral, a vida coletiva resvala sempre para mitos, tribalismos, rituais de condenação. A assembleia escolar é apenas a versão grotesca de uma regra mais funda.
Radu Jude conduz o filme até ao limite do insuportável e deixa-o suspenso, entre o riso e a vertigem. O choque inicial desfaz-se num retrato mais vasto. A intimidade exposta funciona apenas como faísca de um mecanismo antigo. O coro que se ergueu na assembleia prolonga-se noutras arenas, atravessa ruas, infiltra-se nas redes, fixa-se sempre noutro alvo. Troca de palavras, troca de rostos, mantém o compasso. Como no passeio errante do flâneur, cada rosto devolve um reflexo, cada ruído da cidade ecoa num julgamento sem fim.
A obscenidade circula porque é inseparável da vida em comum. Troca de cenário, muda de máscara, persiste.
Maria Castello Branco
Maria Castello Branco é comentadora na CNN Portugal e cronista no Expresso. É coautora do podcast Lei da Paridade. Licenciou-se em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Católica Portuguesa e concluiu um mestrado em Teoria Política na London School of Economics. Trabalhou em consultoria de assuntos públicos, com experiência em comunicação estratégica e políticas públicas.
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