Em 1982, o cineasta britânico Alan Clarke — antigo soldado, mineiro de ouro no Canadá e vendedor de seguros — começava a fazer a lenta transição da BBC, onde tinha trabalhado e aperfeiçoado a sua arte ao longo dos 15 anos anteriores, para o cinema. No entanto, como acontecia com muitos realizadores de televisão no Reino Unido, o cinema não representava uma libertação total da televisão, mas antes uma carreira paralela. À data da sua morte prematura por cancro, em 1990, Clarke tinha realizado apenas três longas-metragens concebidas especificamente para o grande ecrã: a versão cinematográfica de Scum (1979), refilmagem de uma versão televisiva de 1977 que fora proibida; a ópera rock de inspiração brechtiana Billy the Kid and the Green Baize Vampire (1985); e a sombria comédia sexual de classe trabalhadora Rita, Sue and Bob Too (1987). Hoje, a reputação de Clarke assenta sobretudo nos telefilmes do mesmo período, nomeadamente Made in Britain (1983), realizado para a ITV com um jovem Tim Roth, e The Firm (1988), produzido para a BBC com Gary Oldman. Em círculos mais cinéfilos, são celebrados os especiais austeros da BBC: Contact (1985), Road (1987), Christine (1987) e, acima de todos, o célebre Elephant (1989), título que inspiraria o filme homónimo de Gus Van Sant em 2003. Nesses radicais exercícios de experimentação com a steadicam — então recentemente introduzida no Reino Unido —, uma cena simples podia prolongar-se durante vários minutos, enquanto a câmara serpenteava por becos, corredores e vastos espaços exteriores, seguindo os protagonistas. Nas mãos de Clarke, esses padrões de movimento possuíam a notável capacidade de reforçar a narrativa ao mesmo tempo que a levavam ao limiar da abstração.
Adaptado da primeira peça publicada de Bertolt Brecht, Baal (1982), com David Bowie no papel principal, foi o último filme de Alan Clarke antes do seu momento de revelação com a steadicam, que viria a transformar radicalmente os seus métodos de trabalho. Antes dessa inovação tecnológica, os telefilmes e peças televisivas de Clarke eram mais heterogéneos. Obras como Penda’s Fen (1974), Diane (1975), Nina (1978) ou várias das suas contribuições para as séries The Wednesday Play e Play for Today mostram um artista a confrontar-se com os limites formais do meio televisivo — objetivas de longo alcance, cenários reutilizados, múltiplas câmaras — e a procurar formas criativas de os subverter. Recebido com perplexidade por críticos de televisão hostis, Baal foi anunciado abertamente como um veículo de estrelato para David Bowie, então no auge da sua popularidade. Clarke e o produtor Louis Marks visitaram o músico na sua casa na Suíça, depois de o verem em palco, na Broadway, no ano anterior, em The Elephant Man — uma curta série de representações que Bowie afirmaria mais tarde ter sido determinante para que muitos produtores e realizadores o passassem a considerar um artista versátil. No ambicioso e meticuloso David Jones (o verdadeiro nome de Bowie), Clarke e Marks encontraram um colaborador disponível para abraçar um material exigente e complexo. Bowie confessou-lhes ser obcecado por Brecht desde os anos 1960, quando o seu interesse pela Alemanha e pela sua história cultural começou a enraizar-se — veja-se também Just a Gigolo (1978), de David Hemmings, e Christiane F. (1981), de Ulrich Edel, ambos incluídos nesta retrospetiva do Batalha. Entre o lançamento de Under Pressure (a sua colaboração de 1981 com os Queen) e Let’s Dance (1983), o poder mediático de Bowie era tal que o desafiante Baal foi estreado em horário nobre na BBC1, numa terça-feira à noite. Contudo, ao competir com um drama sentimental protagonizado por um envelhecido Laurence Olivier, o filme parecia condenado ao fracasso.
Filmado à maneira dos primeiros filmes mudos — teatral e plano, com personagens que entram e saem do enquadramento pelas margens —, Baal constitui uma exemplar tradução de Brecht para o formato televisivo. Com o uso irónico de divisões de ecrã, legendas declamatórias e cenários artificiais, Clarke exibe deliberadamente a artificialidade desta peça de teatro televisivo. No seu último filme dependente de tripés e carris, aquele que muitos consideram o maior cineasta britânico do pós-guerra mantém-se fiel às objetivas de longo alcance, que mantêm a ação a uma distância rigorosa — um gesto provocador e excêntrico, tendo em conta a pobre qualidade de transmissão e o reduzido formato em que o filme seria visto pelo público britânico em casa. Numa entrevista à BBC Sounds, no ano seguinte, David Bowie confessou ter considerado Baal “uma peça de televisão intensa, mas não muito acessível”. Refletindo as queixas de muitos críticos e jornalistas da época, acrescentou que era difícil até “ver a ação — as nossas personagens eram minúsculas no ecrã. As câmaras do Alan”, disse, “pareciam estar no estúdio ao lado — aquilo é que eram planos gerais!” Talvez por isso, ver o filme restaurado e exibido no cinema seja, ao mesmo tempo, um alívio e uma traição.
No entanto, ao transpor Brecht para a televisão britânica através de Bowie, Clarke criou algo próximo do cinema puro: uma fusão audaciosa de forma, material e intérprete, realizada com os recursos mais escassos. No papel do criminoso e mulherengo Baal, Bowie surge cansado, venal e irresistível na sua pura repugnância. O maior astro do glam rock do pós-guerra, que na altura se queixava de apenas lhe serem oferecidos papéis de “alienígenas verdes que tocam rock and roll”, permite-se ser feio e brutal, sem qualquer vaidade. Quando Bowie canta os textos de Brecht, tocando banjo e olhando diretamente para a câmara — tal como acontece nos primeiros momentos do telefilme e periodicamente ao longo da obra —, o efeito é absolutamente eletrizante.
Christopher Small
Christopher Small é crítico de cinema, programador e editor, e vive em Praga, na República Checa. É responsável pelo editorial e pelas publicações do Festival de Locarno, incluindo a revista diária Pardo, e dirige a Academia de Críticos desde 2017. Durante quatro anos, foi curador internacional da DAFilms e, entre 2019 e 2021, integrou o Comité de Seleção do Sheffield DocFest. É fundador, coeditor e editor da Outskirts Film Magazine, uma publicação anual impressa dedicada ao cinema do passado e do presente.
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