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Fanfare 2025, Priscila Fernandes

Isabella Lenzi
18 de Setembro de 2025

Fernandes, que há anos vive nos Países Baixos, e hoje reside numa aldeia rural no norte da Holanda, tem construído uma trajetória marcada por investigações em torno da pedagogia, do trabalho — e do direito ao ócio —, da liberdade e da ficção. A artista recorre frequentemente a estruturas narrativas e formas culturais aparentemente simples — o jogo, o conto, a música — para questionar os mecanismos ideológicos que regulam nossa perceção do tempo, do prazer e da possibilidade de ação coletiva. Obras anteriores como The Book of Aesthetic Education of the Modern School (2014) e What Horses Dream Of? (2023) já evidenciavam o seu interesse pela construção social da sensibilidade, pela fricção entre desejo e disciplina e pelas estruturas de poder e privilégio.

Fanfare 2025 é uma ficção distópica que se desenrola em cenários bucólicos. Filmado em Giethoorn, cidade aquática no interior da Holanda — a mesma onde Bert Haanstra rodou o clássico holandês Fanfare (1958) —, o filme recria e atualiza a narrativa original: uma banda filarmónica rural dividida por disputas internas tenta, ainda assim, chegar a tempo do concurso nacional.

Mas o tempo, aqui, é outro. Na versão de Fernandes, os músicos, como na obra original de Haanstra, estão em desacordo, divididos por pequenas disputas que os fazem perder tempo. Ao se darem conta de que estão atrasados para o concurso, lançam-se numa corrida apressada e desorientada. Marcham entre vacas, remam por canais, ensaiam entre juncos. Chegam, enfim, ao local da competição e encontram apenas uma juíza de olhos vendados e uma paisagem submersa. Apesar de não haver concorrentes, recebem o segundo lugar, depois o terceiro e, por fim, uma menção honrosa como prémio de consolação. A banda toca desolada, com os instrumentos voltados para a água que tudo encobre, como se as suas desavenças os tivessem deixado alheios ao mundo à sua volta.

Com humor absurdo e melancolia lírica, Fanfare 2025 transforma a comédia de costumes em fábula crítica. Fernandes trabalha com uma fanfarra local real — De Bergklanken —, que atua como protagonista do filme. A produção coletiva, o sentimento de comunidade e o enraizamento no território são centrais: o filme original faz parte do imaginário identitário da região e os seus habitantes já conheciam as melodias antes mesmo da chegada da câmara de Priscila.

Neste remake, Fernandes contrapõe a imagem idealizada do pós-guerra — de uma comunidade em harmonia com a paisagem — à realidade contemporânea marcada pela crise ecológica, pela nostalgia reacionária e pela polarização ideológica. Se, na versão de Haanstra, a banda supera as suas diferenças e vence o concurso, na versão de 2025, os conflitos persistem e o mundo está a afundar-se, literal e metaforicamente. A água sobe até aos joelhos e a música já não convence o júri. O nível não para de subir, resultado do aquecimento global que todos sentimos de uma maneira ou de outra.

O filme estabelece um diálogo com outros trabalhos audiovisuais que misturam música, sátira e crítica social: de Prova d’orchestra (1978), de Fellini, com sua orquestra em rebelião constante, a I clowns (1970), do mesmo autor, onde o riso e o fracasso se misturam em cenas que oscilam entre o grotesco e o afeto. Também evoca Cruzada (2010), vídeo da artista brasileira Cinthia Marcelle, em que 16 músicos surgem dos quatro cantos de um cruzamento — quatro de cada lado, cada banda com uma cor. Ao alcançarem o centro da encruzilhada, iniciam um duelo sonoro que termina numa coreografia de troca de lugares, formando novas bandas híbridas que, em harmonia, se dispersam pelas quatro direções. Em Silly Symphony: Music Land (1935), uma das primeiras obras de Walt Disney, saxofones e violinos travam romances proibidos, batalhas musicais e reconciliações sem palavras, tal como em Fanfare 2025, onde os instrumentos são personagens que riem, brigam, choram e anunciam o fim. Instrumentos cujos sons se confundem com o mugido dos animais, o sopro do vento e o murmúrio dos canais.

Se Fanfare 2025 é uma ficção agridoce sobre um mundo que se desfaz, a obra There Are No Radical Futures baseia-se em registos que documentam a tentativa de mantê-lo unido ou, ao menos, habitável. Filmada em Paris durante o encontro internacional organizado pela La Fanfare Invisible, acompanha, por quatro dias, 19 fanfarras militantes de diferentes partes da Europa. Em ensaios, workshops e intervenções de rua, os músicos tocam juntos para protestar contra a violência, a desigualdade, a crise climática, o patriarcado, o racismo e o fascismo.

As bandas reúnem amadores e profissionais, jovens e idosos, e adotam uma prática musical coletiva e desobediente, inspirada nas lutas populares, sindicais e nas canções de revolução. Em ações que combinam música e militância, levantam questões como a precariedade habitacional, os despejos forçados, a situação de coletivos de migrantes menores e a solidariedade com a Palestina e com os movimentos feministas e antirracistas.

There Are No Radical Futures alterna entre registos das performances musicais e fragmentos de debate político, construindo um testemunho coral sobre a urgência de resistir. Mais do que documentar os sons, Fernandes capta as práticas de escuta coletiva: como se organizam, que repertórios escolhem, quais memórias carregam, o que esperam da música e do mundo.

A artista inscreve-se aqui como testemunha e amplificadora de uma ação viva. As fanfarras militantes que acompanha — como a Fanfarria Transfeminista (Madrid), a Block Brass (Países Baixos), a Ottoni a Scoppio (Milão), entre outras — são formações frágeis, improvisadas, mas potentes. Reencenam o gesto de apropriação de instrumentos de poder para subvertê-los com alegria. As suas palavras convocam à força coletiva como única via possível para mover o que nos imobiliza.

Num dos trechos mais densos da obra, integrantes da Fanfarria Transfeminista, relatam-se episódios de repressão policial durante manifestações e explicam como utilizam a música para desescalar a violência e criar impacto positivo. Já os músicos da banda italiana Basaglia, de Nápoles, comentam o avanço de governos neofascistas que tentam reverter conquistas históricas dos movimentos feministas — como os direitos das mulheres e os direitos reprodutivos —, e como, através da música, resistem a esse retrocesso conservador.

O manifesto da La Fanfare Invisible fala de “ataques musicais”, “terrorismo harmónico” e “delinquência acústica”. Mas tudo é feito com leveza, em nome de uma “resistência alegre” que busca reatar os fios do tecido social por meio do som. Assim como nos versos de “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, canção que marcou o início da Revolução dos Cravos: “O povo é quem mais ordena / dentro de ti, ó cidade”. Até hoje, essa música ressoa como um hino de liberdade, fraternidade e reivindicação social, entoado em manifestações políticas como as do 1.º de Maio. Música como convite à escuta, à ação e à festa. Entre a distopia ficcional e a documentação militante, os dois filmes de Priscila Fernandes investigam as potencialidades da música e da organização comunal como formas de lembrar, resistir e imaginar. Fanfarras, no plural: ora formações tradicionais em vias de desaparecimento; ora coletivos ativistas que sopram contra o status quo. Ambas, no entanto, são comunidades vulneráveis, intensas, reunidas pelo som e por um desejo — ou luta — comum.

O projeto apresentado em Portugal articula cinema, instalação e performance num gesto de colaboração que é ao mesmo tempo estético e político. “Quando a água sobe, é preciso tocar mais forte”, parece dizer este conjunto de obras. Ou, talvez, nos ajude a lembrar que é preciso escutar com mais atenção e cooperar.

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