Constelação #5: Vai e dá-lhes trabalho...
Daniel Ribas e Paulo Cunha
15 de Maio de 2024

Na história do cinema português, o logro de que as “comédias à portuguesa” dos anos 1930–1940 foram a nossa “época de ouro” tem sido repetido até à exaustão. E se estudos recentes comprovam que essas comédias tão próximas do humor “revisteiro” não foram assim tão populares na sua época, algumas vozes insuspeitas, como o próprio António Ferro, mentor da estratégia de propaganda do salazarismo, reconheceram essa frustração ao etiquetar essas comédias como “o cancro do cinema nacional”. Nas duas décadas seguintes, o Neorrealismo e o Cinema Moderno colocaram a comédia numa espécie de quarentena profilática, lançando-lhe o anátema de género maldito que defraudou o desígnio vicentino de não castigar os costumes propalados pela ideologia fascista.


Mas eis que, numa manhã de abril, tudo mudou e a comédia recuperou paulatinamente a sua função de regulação social. Passado o primeiro fulgor revolucionário, e uma certa obsessão de filmar o “aqui e agora”, vários cineastas recuperaram a vontade de “brincar com coisas sérias” e denunciar a realidade que nos foi escondida ou roubada durante a “longa noite” do fascismo.


Inspirada numa memorável frase dirigida a João de Deus, personagem interpretada por João César Monteiro, esta constelação convida a uma revisão das “comédias lusitanas” (subtítulo de Recordações da Casa Amarela [1989]), apresentando filmes que abordam a comédia de forma paradoxal e inventiva, muitas vezes através de refinada ironia ou de um tom mais corrosivo. No cardápio selecionado, decidimos começar pelo non sense satírico anti-histórico de Artur Semedo, com O Rei das Berlengas, cuja rodagem se iniciou em novembro de 1975. Esta incursão pela herança historicista propagandeada pelo Estado Novo integra uma tendência pós-revolucionária (com A Confederação [1977], Veredas [1978] ou O Barão de Altamira [1986]), que propunha uma revisitação crítica aos mitos e lendas fundacionais da identidade portuguesa.


Prosseguimos a degustação com o cómico verbalizado através de aforismos celebrizado por João César Monteiro, na primeira declarada “comédia lusitana” em tom trágico, que acompanha as deambulações de João de Deus, o profissional liberal tornado vagabundo, mais tarde, convertido em mestre gelateiro e, finalmente, em aristocrata. Recordações da Casa Amarela é o primeiro da ilustre Trilogia de Deus (A Comédia de Deus [1995] e As Bodas de Deus [1999]),um dos grandes momentos da nossa cinematografia e um corrosivo olhar para a democratização da sociedade portuguesa e de uma certa Lisboa dos anos 1980/90. João de Deus teria o seu último opus como João Vuvu, no último filme do cineasta, Vai e Vem (2003).


A sessão seguinte agrupa o tom jocoso da animação de Joana Toste com o retrato decadentista de João Botelho numa paródia à “testosterona lusitana”, que perpetua um certo “marialvismo” e “chico-espertismo” insistentemente cultivado pela cultura popular. Se Toste é uma representante de um certo humor ligeiro da animação portuguesa contemporânea, Botelho é um descendente de uma certa ironia, que tanto tem relação com a personagem João de Deus, mas também com o refinado humor do nosso mestre, Manoel de Oliveira. Botelho inspirou-se na verve literária, mas aproximou-a de um real mais imediato, centrado num olhar sobre uma certa corrupção intestina da nossa sociedade.


As pequenas histórias são o mote para uma sessão em que são apresentados quatro filmes de “novos valores” do cinema português de então (o final dos anos 1990 e a emergência das Gerações Curtas): o tom meta-discursivo e as referências cinéfilas em Cinemamor (2000), autodenunciado por uma personagem secundária (“se fosse num filme, ninguém acreditava...”); a proposta premonitória de Margarida Cardoso em Dois Dragões (1996)de nos por a olhar para nós próprios a partir do olhar do outro, que depois seria recorrente na sua obra; o tom agridoce de Pedro Caldas em O Pedido de Emprego (2000), cujas dinâmicas variáveis vão descascando a personagem como uma cebola; e a candura do humor negro de Inês de Medeiros em Senhor Jerónimo (1998), que prova que nem a morte pode escapar ao humor.


Finalmente, o último momento desta constelação junta dois registos kitch separados por décadas que se aproximam no tom irónico (e também na centralidade do espaço museológico em ambas as narrativas): a caricatura maneirista de Fernando Lopes que traça um retrato mordaz da “pequena malandragem” lisboeta, ainda refém do estigma de Belarmino (“poderia ter sido um grande campeão, mas...”); e a meticulosa valorização das farsas da realidade, sempre mais surpreendentes que a própria ficção , em Gabriel Abrantes, algo recorrente e transversal à sua obra cinematográfica. Se Crónica dos Bons Malandros (1984)é um protótipo de um cinema popular, A Brief History of Princess X (2016) incorpora os estratagemas irónicos de um certo cinema de artista do novo século.


Esta constelação procura ajudara redescobrir e reabilitar a comédia no cinema português como uma ferramenta fundamental para de nos pôr a rir de nós próprios, expondo os nossos defeitos e vícios, convencendo-nos de que rir continua a ser um bom remédio. Lembrando muitos filmes de outros autores que ficaram, por agora, de fora — José Fonseca e Costa (Kilas, O Mau da Fita [1980] ou A Mulher do Próximo [1988]), Manoel de Oliveira (A Caixa [1994]), Solveig Nordlund e Jorge Silva Melo (E não se pode exterminá-lo? [1979]), Miguel Gomes (Kalkitos [2002]) ou Margarida Lucas (A Sagrada Família [2019]), entre muitos mais, esta constelação é, mais uma vez, um convite para partirmos à descoberta do cinema português, demasiadas vezes desconhecido e incompreendido.

Daniel Ribas

Investigador, programador e crítico de cinema, é Professor Auxiliar na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena o Mestrado em Cinema. É Diretor do CITAR — Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de vários programas de filmes, nomeadamente para o Porto/Post/Doc, no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde IFF. Doutorado em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho, escreve sobre cinema português, cinema contemporâneo e experimental.


Paulo Cunha

Desenvolve trabalho em investigação, programação e crítica de cinema. É Professor Auxiliar na Universidade da Beira Interior, onde é Vice-Presidente do Departamento de Artes. É membro integrado do LabCom — Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 —Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e do INCT Rede Proprietas. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães. Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, escreve sobre cinema português, estudos de coloniais, crítica e cultura cinematográficas.

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